E quais filmes a não perder na Berlinale 2023?
Durante o mês de Janeiro, lá nas novíssimas e incríveis salas do Cinemaxx na Potsdamer Platz, o festival mostrou grande parte dos seus filmes para a imprensa e colaboradores do festival. Faço a cobertura da Berlinale desde 2013. Primeiro para o extinto Huffington Post Brasil e para o Tumblr, onde trabalhei por 3 anos, e depois para o portal português Cinema7Arte, onde publico até hoje. Desde o ano passado, passei a colaborar diretamente com o comitê de seleção da Forum e por isso tive acesso a vários filmes que estarão no programa deste ano. Então, sem mais delongas, listo abaixo os que mais me chamaram a atenção.
Past Lives (Competition)
Past Lives foi um dos dois únicos filmes da competição revelados à imprensa em Janeiro. O outro, que o embargo me proíbe de escrever qualquer coisa sobre, vou deixá-lo para um outro momento, pois não quero ser blacklisted. Mas se você só puder escolher um único filme na Berlinale este ano, este é o seu filme. A estreia de Celine Song é um daqueles filmes imensos que você já sabe que será uma das sensações do festival. É o único filme que o festival dividiu com Sundance, que acabou há poucas semanas. E para um festival do porte da Berlinale abdicar da exclusividade da World Premiere do filme (um dos quesitos da Competition) é um grande indício de um filme a não se perder. Dito isso, eu não vou contar muito sobre a história porque ele tem que ser visto sem nenhum spoiler, mas o que eu posso dizer é que é um filme sobre relações perdidas e sobre as muitas vidas (e às vezes, personalidades) que nós vivemos ao longo da nossa jornada por aqui. E como apesar de mudarmos e evoluirmos, no fundo continuamos sendo as mesmas pessoas. Lindo, imenso e com certeza um dos melhores filmes do ano, já logo em Fevereiro. Não perca!
The Eternal Memory (Panorama)
No final da sessão do filme da Maite Alberdi dava para ver e ouvir as reações emocionadas da sisuda imprensa alemã. Por entre olhos vermelhos e narizes fungando no escuro da sala, ninguém saiu ileso ao impacto emocional de The Eternal Memory. Portanto, preparem seus lenços.
Augusto e Paulina são um casal apaixonado e estão juntos há 25 anos. Na cena que abre o filme, Paulina pergunta ao marido se ele sabe quem é ela. Ele não sabe. Quando ela o informa de que eles se conheceram há um quarto de século atrás, e que são na verdade um casal, ele olha para ela com espanto e incredulidade. Há oito anos, Augusto foi diagnosticado com Alzheimer e, desde então, Paulina assumiu o papel de cuidadora, registrando em vídeo todos os momentos da deterioração da sua memória. Na sua juventude, Augusto foi um jornalista famoso e uma voz ativa na arena cultural chilena, conhecido pela sua cobertura jornalística do regime de Pinochet e os esforços do governo para apagar a memória coletiva de uma nação. Paulina, ex-atriz e Ministra da Cultura da presidente Michelle Bachelet na época, agora se vê encarregada de não deixar a memória de Augusto se desvanecer. Então ela dá início a um diário cronológico registrando o dia-a-dia do marido desde o terrível diagnóstico. Um filme lindo e devastador que é com certeza um dos pontos altos do festival deste ano.
Hello Dankness (Panorama)
Um dos filmes mais originais e incríveis do programa deste ano é o segundo filme das irmãs que formam o coletivo Australiano Soda Jerk. Feito todo de recortes de filmes americanos dos anos 80 e 90 (pirateados, segundo elas), Hello Dankness reinventa uma nova narrativa para estes filmes e adiciona elementos atuais a eles criando uma espécie de Frankenstein cinematográfico.
O filme traça a evolução de um bairro americano desde 2016, quando Trump foi eleito, até os dias atuais, à medida que a realidade consensual vai se desmoronando dando espaço a pandemias globais e conspirações políticas. Uma comédia satírica mas que logo se transforma num filme de terror, quando tragédias recentes se cruzam com narrativas do passado dando origem a um universo alternativo completamente surreal. Nesse mundo paralelo, Tom Hanks de Meus Vizinhos São um Terror (1989) se transforma em um apoiador de Bernie Sanders, que mora logo ao lado de Annette Bening de Beleza Americana (1999). Ela por sua vez exibe orgulhosamente uma placa de Hillary Clinton no seu jardim, de onde acena para Mike Meyers de Quanto Mais Idiota Melhor (1992). Uma das experiências cinematográficas mais loucas e imaginativas do ano para não perder na Berlinale.
Talk to Me (Berlinale Special)
Talk to Me parece ser um daqueles filmes que de vez em quando ressuscitam o gênero horror de um certo estado dormente e dão origem a uma legião de clones. Foi assim com o Pânico de Wes Craven lá em 1996 ou com A Bruxa de Blair de Daniel Myrick e Eduardo Sánchez em 1999. Talvez seja um pouco cedo para uma afirmação hiperbólica como esta, mas pelas reações entusiasmadas que o filme teve em Sundance quando estreou na metade de Janeiro, acho que tenho alguma razão. O filme foi escrito e dirigido por dois YouTubers populares da Austrália, que pegaram uma história que já foi contada infinitas vezes em outros filmes, mas que aqui o transformaram num filme absolutamente original e aterrador.
Um grupo de amigos encontra uma misteriosa mão embalsamada e descobrem que podem invocar espíritos com ela. Inicialmente cativados pela excitação do momento, a obsessão deles logo sai do controle quando um deles abre um portal para um mundo de fantasmas. Um debut eletrizante que equilibra com maestria o suspense, frustrando expectativas e clichês do gênero de uma forma muito sofisticada até chegar num final brutal e aterrorizante.
Propriedade (Panorama)
Os primeiros 40 minutos do longa de Daniel Bandeira são pura tensão. É como na Revolução dos Bichos de George Orwell, só que os animais aqui são substituídos por gente. Funcionários de uma fazenda no nordeste brasileiro que se revoltam contra os patrões sulistas, ricos e brancos, proprietários da terra onde eles cresceram e trabalharam a vida inteira. Na fazenda, estes trabalhadores descontentes descobrem que serão todos despedidos e que a fazenda dará lugar a um hotel. Quem faz a patroa é Malu Galli. Ela é Teresa, uma mulher lidando com estresse pós-traumático após ter sido refém num assalto que correu mal. O marido então a convence a acompanhá-lo numa temporada longe da cidade grande, mas assim que eles chegam na fazenda, no seu novo carro blindado, a situação se complica e um jogo de xadrez mortal entre casa grande e senzala se dá início.
Talvez o único problema de Propriedade é que depois dessa tensa e longa premissa em ebulição, Bandeira parece perder o interesse na disputa de classes que ele pôs em marcha e as coisas começam a meio que se diluir a partir desse ponto. Na última meia hora, o filme se transforma num thriller esquemático de gato e rato (com alguns momentos gore pelo meio), e que funciona mais como guilty pleasure do que cinema de impacto e reflexão. Mas enfim, nada que estrague a experiência de ver um filme brasileiro com essa vitalidade numa das seções mais prestigiadas do festival.
E também:
The Teacher’s Lounge: Uma professora se envolve num pequeno escândalo numa escola, onde um aluno árabe é acusado de roubo. Ela então decide fazer algo para ajudar o menino, mas o seu gesto tem um efeito dominó que é devastador. Uma espécie de Brian De Palma alemão para ver com o coração pulsando.
Passages: Um casal gay (o maravilhoso Franz Rogowski e Ben Whishaw), juntos há 15 anos, se vê num dilema quando um deles se apaixona por uma mulher (Adèle Exarchopoulos). Um filme sobre narcisismo e as toxicidades das relações. O melhor filme de Ira Sachs.
Iron Butterflies: um documentário que investiga o abate do voo M17 da Malaysia Airlines em 2014 no leste da Ucrânia e que se concentra em expor as realidades políticas por trás da tragédia e os mecanismos da guerra russa.
Drifter: O filme de estreia de Hannes Hirsch conta uma história talvez too close to home para nós berlinenses. Moritz é um jovem gay que se muda com o namorado para Berlim e aqui na capital descobre as drogas e o mundo hedonista da cidade. Acompanhamos a transformação física e mental do personagem enquanto o mundo a sua volta se desmorona.
Between Revolutions: misturando ficção e documentário, duas mulheres trocam correspondência entre si em realidades completamente diferentes, mas muito familiares: uma está no Irã em 1979 lutando para derrubar o Shah, a outra vive os anos de chumbo da Romênia de Ceaușescu. Um dos filmes mais lindos e reveladores do festival.