10 filmes para não perder na Berlinale (e como navegar pelas diferentes seções do festival)

Wellington Almeida é programador e organizador do Soura Film Festival e colaborador da seção Forum da Berlinale. Redator e tradutor, também colabora com o portal Cinema Sétima Arte de Portugal.

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Wellington Almeida
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Feb 10, 2023

"Campingplatz" in front of the Berlinale ticket counter. Photo: HAN/ 2018.

O Festival Internacional de Cinema de Berlim, mais conhecido como Berlinale, faz parte da lista do chamado "Big 3". Junto com Cannes e Veneza, eles compõem a tríade dos maiores e mais prestigiados festivais de cinema do mundo. Além disso, durante o festival, o European Film Market acontece em paralelo, com produtoras, buyers e sale agents fechando contratos de distribuição ou apenas engendrando networkings com a indústria. Isso tudo faz da Berlinale um dos eventos mais importantes da indústria cinematográfica e atrai cineastas, cinéfilos e imprensa de todo o mundo.

Para os cinéfilos mais experientes ou mesmo para os cinéfilos de Berlim, isso não é novidade nenhuma. Mas para quem está visitando o festival pela primeira vez pode ser um tanto intimidador saber como navegar pelos dez dias de eventos acontecendo em milhões de lugares, tudo ao mesmo tempo.

Este artigo é para quem quer descobrir os filmes do programa, que este ano conta com mais de 400 títulos. Para começar, é preciso saber o que evitar e o que priorizar. Os filmes com o "A-list" do cinemão contemporâneo ou os do glamour do tapete vermelho são geralmente disputados a tapa, aqueles que a gente vê as pessoas segurando plaquinhas à sua procura na Potsdamer Platz. A não ser que você seja um fã incondicional que queira ver o filme com o seu ídolo na mesma sala, eu aconselharia que estes fossem evitados. Mas claro, é tudo uma questão de sorte.

Filmes como o maravilhoso Tár (que Cate Blanchett e Todd Field vêm apresentar numa sessão de gala e que, aliás, depois estarão num evento do Talents com todo o cast e aberto ao público) ou o novo do Spielberg The Fabelmans (que estará em Berlim recebendo um urso honorário com direito à retrospectiva quase integral da sua filmografia) eu também aconselharia evitar. Ambos os filmes já têm distribuição comercial garantida em Berlim e logo estarão numa sala perto de você.

Com os "big titles" de fora, os filmes da competição vêm logo em seguida no quesito popularidade. E são também os mais caros. Cada bilhete este ano vai custar €18 (caso seja no Berlinale Palast). Valor bem salgado para os padrões berlinenses. Por isso, é sempre bom saber no que você está se metendo. Nos meus primeiros anos de Berlinale, quando eu ainda não tinha acreditação, a questão econômica pesava bastante; então, com esta limitação à partida, eu fazia a minha equação mental do que deveria ser priorizado ou evitado. Mas, se você anda no budget, não se assuste porque tem para todos os bolsos. E filmes para as sessões menos concorridas variam entre €6 e €15 e, no último dia do festival, todos os bilhetes custarão €11. Veja todos os valores detalhados aqui.

Logo abaixo eu fiz uma pequena descrição para quem quer entender (ou descobrir) como funcionam as várias seções do festival. Caso você tenha chegado até aqui só para saber quais filmes não perder nesta 73ª edição da Berlinale, eu sugiro que você pule o bloco de texto que vem logo a seguir. Então bora lá?

Cena do filme Ash Wednesday, de Bárbara Santos e João Pedro Prado. © Kleber Nascimento.

Entendendo as diferentes seções do festival

Volta e meia quando vejo, sei lá, um filme difícil e experimental como o Horse Opera, que faz parte do programa deste ano e é basicamente todo feito de cavalos urinando, fico imaginando as reações do espectador mais desavisado. Se ele acabar naquela sala por falta de informação (ou de opção, que também acontece) poderá ter uma experiência absolutamente incrível ou nunca mais retornar ao festival. Portanto, sei que para alguns pode parecer meio óbvio, mas sempre insisto nisso: para aproveitar ao máximo o festival, é importante compreender suas diferentes seções e como navegar por elas.

A principal delas é a Competition, que são os headliners do festival. É aqui que vamos ver os filmes que farão parte do boca a boca durante os 10 dias do festival e talvez pelos próximos meses, quando eles partirem nas suas jornadas pelos festivais mundo afora. A Competition é uma mistura de autores consagrados, filmes políticos ou de novos autores com filmes impressionantes. Ou pelo menos é isso que deveria ser em teoria. Estes serão os filmes que vão concorrer ao prestigiado Urso de Ouro.

Logo abaixo vem a novíssima Encounters, que é mais ou menos quase como a Un Certain Regard de Cannes. Desenvolvida pelo novo diretor artístico Carlo Chatrian há três anos, a seção é quase um complemento da Competition. Com filmes de autores consagrados e primeiras obras, a Encounters concentra-se em filmes inovadores e criativos e oferece espaço para cineastas (conhecidos ou não) mostrarem seus trabalhos mais ousados e instigantes, mas que não têm a grandeza de um filme de competição.

A Panorama é talvez a seção mais popular e democrática do festival e a única que tem um prêmio do público, com cédulas para votação sendo entregues no começo e final de cada projeção. É aqui onde estão os trends do cinema indie contemporâneo e também onde estão a maioria dos títulos queer do programa do festival. O programador-chefe, Michael Stütz, que eu entrevistei o ano passado, é também um dos idealizadores do Teddy Awards, talvez o mais importante prêmio do cinema queer do mundo, e que todo ano em paralelo à Berlinale escolhe os melhores filmes de temática LGBT do festival. Gustavo Vinagre foi o ganhador do ano passado com o seu fofíssimo Três Tigres Tristes (que estreou na Forum).

A Forum é uma das seções mais antigas da Berlinale e é dedicada a filmes não convencionais, de forte teor político e que muitas vezes desafiam a forma e estrutura. Com a programação feita pela cinemateca berlinense, o Kino Arsenal, é uma plataforma para cineastas e artistas independentes mostrarem seus trabalhos e é conhecida pelo seu mix de filmes experimentais, restaurações de arquivo e objetos originais e inclassificáveis. Foi aqui que descobrimos maravilhas como o épico brasileiro Mato Seco em Chamas do ano passado ou o maravilhoso Bait em 2019, que transformou o seu diretor Mark Jenkin num dos mais badalados cineastas britânicos dos últimos anos.

Em seguida, temos a Perspektive Deutsches Kino, que é um showcase do novo cinema alemão e que mostra principalmente filmes vindos das duas escolas de cinema mais populares da Alemanha, a DFFB e a Babelsberg em Potsdam. É aqui que este ano o brasileiríssimo (mas produzido na Alemanha) Ash Wednesday vai passar, com impressionantes dez sessões agendadas no festival. Nem os filmes maiores tiveram tantos slots como o filme da Bárbara Santos e do João Pedro Prado. O filme de 27 minutos, protagonizado por várias caras conhecidas aqui do Cena Berlim, é um musical sobre racismo estrutural e conflitos de classe que se passa todo numa favela do Rio, só que recriada integralmente nos estúdios da Babelsberg em Potsdam! O filme fará sua estreia no dia 21/02 no Kino International e será apresentado num bloco com outros dois filmes de média duração.

E por último vem a Generation, onde estão concentrado os filmes que abordam temas relacionados aos mais jovens ou onde eles aparecem como protagonistas. Mas apesar de isso parecer ser um pouco redutor, é uma das seções mais divertidas e acessíveis do festival. Acessível não só em conteúdo, mas também no valor dos ingressos, pois é a única seção com bilhetes a módicos €6 (ou €4,50 para grupos de 6 ou mais pessoas).

Além dessas seções principais, a Berlinale também oferece exibições especiais, como a Berlinale Special, ou uma seção só para séries de TV, a Berlinale Series, e muitas exposições, workshops e eventos paralelos, tornando a Berlinale uma experiência única de festival de cinema.

Cena do filme colagem Hello Dankness, do duo australiano Soda Jerk. © Soda Jerk.

E quais filmes a não perder na Berlinale 2023?

Durante o mês de Janeiro, lá nas novíssimas e incríveis salas do Cinemaxx na Potsdamer Platz, o festival mostrou grande parte dos seus filmes para a imprensa e colaboradores do festival. Faço a cobertura da Berlinale desde 2013. Primeiro para o extinto Huffington Post Brasil e para o Tumblr, onde trabalhei por 3 anos, e depois para o portal português Cinema7Arte, onde publico até hoje. Desde o ano passado, passei a colaborar diretamente com o comitê de seleção da Forum e por isso tive acesso a vários filmes que estarão no programa deste ano. Então, sem mais delongas, listo abaixo os que mais me chamaram a atenção.

Past Lives (Competition)

Past Lives foi um dos dois únicos filmes da competição revelados à imprensa em Janeiro. O outro, que o embargo me proíbe de escrever qualquer coisa sobre, vou deixá-lo para um outro momento, pois não quero ser blacklisted. Mas se você só puder escolher um único filme na Berlinale este ano, este é o seu filme. A estreia de Celine Song é um daqueles filmes imensos que você já sabe que será uma das sensações do festival. É o único filme que o festival dividiu com Sundance, que acabou há poucas semanas. E para um festival do porte da Berlinale abdicar da exclusividade da World Premiere do filme (um dos quesitos da Competition) é um grande indício de um filme a não se perder. Dito isso, eu não vou contar muito sobre a história porque ele tem que ser visto sem nenhum spoiler, mas o que eu posso dizer é que é um filme sobre relações perdidas e sobre as muitas vidas (e às vezes, personalidades) que nós vivemos ao longo da nossa jornada por aqui. E como apesar de mudarmos e evoluirmos, no fundo continuamos sendo as mesmas pessoas. Lindo, imenso e com certeza um dos melhores filmes do ano, já logo em Fevereiro. Não perca!

The Eternal Memory (Panorama)

No final da sessão do filme da Maite Alberdi dava para ver e ouvir as reações emocionadas da sisuda imprensa alemã. Por entre olhos vermelhos e narizes fungando no escuro da sala, ninguém saiu ileso ao impacto emocional de The Eternal Memory. Portanto, preparem seus lenços.

Augusto e Paulina são um casal apaixonado e estão juntos há 25 anos. Na cena que abre o filme, Paulina pergunta ao marido se ele sabe quem é ela. Ele não sabe. Quando ela o informa de que eles se conheceram há um quarto de século atrás, e que são na verdade um casal, ele olha para ela com espanto e incredulidade. Há oito anos, Augusto foi diagnosticado com Alzheimer e, desde então, Paulina assumiu o papel de cuidadora, registrando em vídeo todos os momentos da deterioração da sua memória. Na sua juventude, Augusto foi um jornalista famoso e uma voz ativa na arena cultural chilena, conhecido pela sua cobertura jornalística do regime de Pinochet e os esforços do governo para apagar a memória coletiva de uma nação. Paulina, ex-atriz e Ministra da Cultura da presidente Michelle Bachelet na época, agora se vê encarregada de não deixar a memória de Augusto se desvanecer. Então ela dá início a um diário cronológico registrando o dia-a-dia do marido desde o terrível diagnóstico. Um filme lindo e devastador que é com certeza um dos pontos altos do festival deste ano.

Hello Dankness (Panorama)

Um dos filmes mais originais e incríveis do programa deste ano é o segundo filme das irmãs que formam o coletivo Australiano Soda Jerk. Feito todo de recortes de filmes americanos dos anos 80 e 90 (pirateados, segundo elas), Hello Dankness reinventa uma nova narrativa para estes filmes e adiciona elementos atuais a eles criando uma espécie de Frankenstein cinematográfico.

O filme traça a evolução de um bairro americano desde 2016, quando Trump foi eleito, até os dias atuais, à medida que a realidade consensual vai se desmoronando dando espaço a pandemias globais e conspirações políticas. Uma comédia satírica mas que logo se transforma num filme de terror, quando tragédias recentes se cruzam com narrativas do passado dando origem a um universo alternativo completamente surreal. Nesse mundo paralelo, Tom Hanks de Meus Vizinhos São um Terror (1989) se transforma em um apoiador de Bernie Sanders, que mora logo ao lado de Annette Bening de Beleza Americana (1999). Ela por sua vez exibe orgulhosamente uma placa de Hillary Clinton no seu jardim, de onde acena para Mike Meyers de Quanto Mais Idiota Melhor (1992). Uma das experiências cinematográficas mais loucas e imaginativas do ano para não perder na Berlinale.

Talk to Me (Berlinale Special)

Talk to Me parece ser um daqueles filmes que de vez em quando ressuscitam o gênero horror de um certo estado dormente e dão origem a uma legião de clones. Foi assim com o Pânico de Wes Craven lá em 1996 ou com A Bruxa de Blair de Daniel Myrick e Eduardo Sánchez em 1999. Talvez seja um pouco cedo para uma afirmação hiperbólica como esta, mas pelas reações entusiasmadas que o filme teve em Sundance quando estreou na metade de Janeiro, acho que tenho alguma razão. O filme foi escrito e dirigido por dois YouTubers populares da Austrália, que pegaram uma história que já foi contada infinitas vezes em outros filmes, mas que aqui o transformaram num filme absolutamente original e aterrador.

Um grupo de amigos encontra uma misteriosa mão embalsamada e descobrem que podem invocar espíritos com ela. Inicialmente cativados pela excitação do momento, a obsessão deles logo sai do controle quando um deles abre um portal para um mundo de fantasmas. Um debut eletrizante que equilibra com maestria o suspense, frustrando expectativas e clichês do gênero de uma forma muito sofisticada até chegar num final brutal e aterrorizante.

Propriedade (Panorama)

Os primeiros 40 minutos do longa de Daniel Bandeira são pura tensão. É como na Revolução dos Bichos de George Orwell, só que os animais aqui são substituídos por gente. Funcionários de uma fazenda no nordeste brasileiro que se revoltam contra os patrões sulistas, ricos e brancos, proprietários da terra onde eles cresceram e trabalharam a vida inteira. Na fazenda, estes trabalhadores descontentes descobrem que serão todos despedidos e que a fazenda dará lugar a um hotel. Quem faz a patroa é Malu Galli. Ela é Teresa, uma mulher lidando com estresse pós-traumático após ter sido refém num assalto que correu mal. O marido então a convence a acompanhá-lo numa temporada longe da cidade grande, mas assim que eles chegam na fazenda, no seu novo carro blindado, a situação se complica e um jogo de xadrez mortal entre casa grande e senzala se dá início.

Talvez o único problema de Propriedade é que depois dessa tensa e longa premissa em ebulição, Bandeira parece perder o interesse na disputa de classes que ele pôs em marcha e as coisas começam a meio que se diluir a partir desse ponto. Na última meia hora, o filme se transforma num thriller esquemático de gato e rato (com alguns momentos gore pelo meio), e que funciona mais como guilty pleasure do que cinema de impacto e reflexão. Mas enfim, nada que estrague a experiência de ver um filme brasileiro com essa vitalidade numa das seções mais prestigiadas do festival.

E também:

The Teacher’s Lounge: Uma professora se envolve num pequeno escândalo numa escola, onde um aluno árabe é acusado de roubo. Ela então decide fazer algo para ajudar o menino, mas o seu gesto tem um efeito dominó que é devastador. Uma espécie de Brian De Palma alemão para ver com o coração pulsando.

Passages: Um casal gay (o maravilhoso Franz Rogowski e Ben Whishaw), juntos há 15 anos, se vê num dilema quando um deles se apaixona por uma mulher (Adèle Exarchopoulos). Um filme sobre narcisismo e as toxicidades das relações. O melhor filme de Ira Sachs.

Iron Butterflies: um documentário que investiga o abate do voo M17 da Malaysia Airlines em 2014 no leste da Ucrânia e que se concentra em expor as realidades políticas por trás da tragédia e os mecanismos da guerra russa.

Drifter: O filme de estreia de Hannes Hirsch conta uma história talvez too close to home para nós berlinenses. Moritz é um jovem gay que se muda com o namorado para Berlim e aqui na capital descobre as drogas e o mundo hedonista da cidade. Acompanhamos a transformação física e mental do personagem enquanto o mundo a sua volta se desmorona.

Between Revolutions: misturando ficção e documentário, duas mulheres trocam correspondência entre si em realidades completamente diferentes, mas muito familiares: uma está no Irã em 1979 lutando para derrubar o Shah, a outra vive os anos de chumbo da Romênia de Ceaușescu. Um dos filmes mais lindos e reveladores do festival.

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