O chá de camomila tremia dentro da xícara de vidro. Minhas mãos não queriam cooperar com a ideia de tranquilidade que meu rosto queria passar. Cássia já havia percebido o movimento do líquido sem graça dentro do recipiente triste. Mas, sem palavras, combinamos de deixar aquele teatro inofensivo seguir em frente. “Podemos ir indo quando tu terminar”. Assenti com a cabeça enquanto apoiava a mão na barriga. Coloquei a xícara sobre a mesa. O tilintar da porcelana sobre o vidro quase abafou os tiros lá fora.
O carro de Cássia era um Celta dois mil e um pouco mais que dez. Duvidava que aquele pedaço de história ia dar conta da travessia. Cássia provavelmente pensava o mesmo. “Quer ajuda pra entrar?”. Neguei ainda com a mão na barriga. Entrei. Ela terminou de colocar nossas coisas no banco de trás. “Pronta?”.
Se tivesse escolha, não estaria. Se tivesse escolha, estaria em casa com as pernas cansadas pra cima e o bucho cheio de bolacha recheada com as migalhas caindo nas minhas agora fartas tetas. Mas a situação nos últimos meses se tornara insuportável em Porto Alegre. No país todo. Todos os dias protestos. Todos os dias mortes. Balas com destinos certos encontravam vidas cheias de esperança. Esse era o maior medo de Cássia.
“Aqui, toma água!”. Peguei a garrafa ainda olhando para a cidade que ia ficar no meu passado. Estava sendo obrigada a levar meu futuro a outro lugar. Quando fanáticos invadiram Brasília, não dei bola. Eles já haviam feito isso antes, há um tempo atrás, em 2023. Não havia de ser nada. Cássia entendeu tudo muito rápido. Agora ela engolia a estrada com os olhos como se ansiasse fazer parte do destino. Meus olhos resolveram poupar energias. Cássia precisaria de mim para passar pelos postos de revistas.
As fardas azuis faziam parte da paisagem já havia dois anos. Em uma coreografia bem ensaiada, eles se moviam pelas estradas e cidades como um grupo de águias famintas. Não queriam ninguém deixando o país. Mas se conseguíssemos chegar do outro lado, não havia muito o que pudessem fazer. Ainda mais eu estando como estava. Não queriam escândalos nem desavenças com o resto da vizinhança. Estava tudo sob controle e todos estavam felizes. Essa história de fanáticos religiosos tomando o poder era ficção criada nas redes sociais.
Paramos. “Senhoras, saiam do carro por favor”. O azul escuro da roupa ainda me era estranho. Mas não mais do que o grande crucifixo costurado no uniforme. Inventei uma dificuldade física para me levantar. Minha entrada em cena precisava causar comoção. O oficial olhou para minha barriga com cara de não entendo. “Identidade e destino, senhoras”. Saquei meus documentos com as mãos e os olhos trêmulos. Maria da Graça Ferreira dos Santos. Casada com Francisco José dos Santos. “E onde tá teu marido?” Cássia foi rápida, como havíamos ensaiado. “Com a mãe doente, em Santa Maria.” “Viagem longa no teu estado, senhora”. Cássia falava por mim. “Eu sei senhor. Mas a criança não pode nascer longe do pai”. Coloquei a mão na barriga e segurei as lágrimas. O guarda respirou fundo. “Ok, Dona Maria e Dona Ana, podem seguir”. Quando eles sumiram atrás da gente, dei uma risada discreta. “Não te anima demais. Vai ter muita chance ainda pra mostrar teu talento”, disse Cássia. Pela primeira vez desde que começamos a viagem à fronteira, me senti leve.
O primeiro esboço do plano apareceu em nossas conversas há mais ou menos um ano. Depois que a ONG “fechou”, Cássia e os colegas seguiram fazendo o que podiam para denunciar o governo a jornais internacionais. Até que Lucas desapareceu. Depois foi Mariana. Depois Adriana. Cássia não podia ser a próxima. Os campos de refugiados brasileiros na Argentina e no Uruguai eram uma realidade, todos sabiam. Mas como chegar até lá ainda era uma ficção para nós. Transportes clandestinos. Caminhões de carne disfarçados. Trilhas pelas matas. Mas chegar à fronteira não era garantia de conseguir cruzar. A não ser que a gente tivesse um bom motivo.