Eu A escutei. Escutei bem claro como Ela se aproximou em seu ritmo bem passado de quem caminha com a segurança de poder abrir espaços. Ouvi como aos poucos avançou pelas calçadas se rastejando majestosamente e invadiu a entrada do prédio, depois a garagem e logo os apartamentos do térreo. Dessa vez, Ela não veio de cima, batendo suas unhas nos nossos telhados com insistência para que a deixassem entrar. Ela foi mais certeira. Esticou as mãos, os braços, as pernas, o corpo inteiro sobre nossa terra.
Tive tempo de descer as escadas para ver sua chegada. Vi os primeiros vizinhos correndo para onde podiam, gatos lutando para não entrar em casinhas minúsculas, crianças brigando para ficar no colo. O síndico na portaria enfiou as televisões de segurança numa caixa com pressa. Caro demais para serem perdidas agora. E ainda por cima podem ser roubadas! Eu ainda tentava processar suas palavras quando vi alguns desavisados montarem em seus carros como se fossem cavalos de guerra. Alguns logo desistiram. Alguns conseguiram partir. Outros, como eu, voltaram para suas casas para pensar. Mas Ela foi mais rápida. Logo chegou e se encaixou entre as paredes de concreto, as grades de ferro e até bisbilhotou nas caixas do correio.
Me escondi nos meus lençóis e escutei seu silêncio. Como um hóspede que chega na sua casa sem avisar, Ela agora descansava no quarto de visitas sem fazer demandas, mas ao mesmo tempo querendo tudo. Da minha cama, eu comecei a me acostumar com Sua presença que já tomava minhas paredes em formas de gotas suadas.
No segundo dia pela manhã, um som feriu meus ouvidos. Me levantei custosamente dos lençóis brancos sujos que já não trocava há semanas. Meus pés gelaram ao encontrar o chão e foi uma batalha fazê-los chegar até a janela. Um aparato de madeira com um motor barulhento acoplado. Os homens dentro dele flutuavam inseguros enquanto uma única palavra saia de suas bocas várias vezes. A vizinha do lado respondeu eufórica. Seu grito logo virou um coro acompanhado pelas vozes de tantos outros vizinhos que saiam de seus esconderijos. Pensei em abrir a boca, mas Ela segurou minha garganta como se eu agora A pertencesse. Não podia deixá-La. Através da tela de proteção que um dia serviu para conter um animal dentro do minúsculo apartamento, vi tudo sem me mexer. Coletes salva-vidas laranjas carregaram a menina de cinco anos do 203, depois a senhora rabugenta do 304, os cachorros do 101 ficaram, não cabiam no barco com a Dona Marta e seus três filhos. O menino chorou com os braços esticados como se fossem uma corda que pudesse agarrar seu vira-lata. Uma mulher chorosa do 203 entregou um cobertor bem enrolado para um dos homens jovens do barco. Pedia desesperada que, por favor, levasse seu cobertor. Sem entender ele desembrulhou o amontoado de tecido e um choro estridente de bebê fez até os cachorros se calarem.