Como escritor, sempre fui apegado à minha biblioteca pessoal, de sua formação com os primeiros livros infantis num cantinho crescente do meu armário até seu auge numérico, evento já pretérito, quando alcançou algumas centenas de exemplares e abarrotou duas estantes inteiras no hall do último apartamento em que morei sozinho no Rio. Seu crescimento paulatino e garimpeiro foi interrompido mais de uma vez, as mais recentes quando me mudei para a Alemanha pela primeira vez, ano passado, para um intercâmbio de sete meses em meu doutorado, e agora, quando uma nova mudança para Berlim - quiçá definitiva - me obriga a reduzir ainda mais o tamanho de minha coleção.
Para um escritor, não é nada fácil desapegar de um livro que seja, imagina de uma parcela considerável de uma coleção. Livros são como tijolos que constroem uma formação intelectual, ou melhor, como camadas de uma rocha, desgastada pelas intempéries mas formadas pela sobreposição contínua de calor, pressão e sedimento. Prefiro a rocha ao tijolo porque vejo minha formação não como um edifício arquitetado desde a base, mas como uma pedra, forjada no magma e no vento, camada por camada, misturada, temperada. Livro por livro.
Como um geólogo, sei onde comprei cada um deles: a pesada edição das obras completas de Shakespeare, em papel bíblia, pela qual paguei 50 reais (na época uma fortuna) na Livraria Cultura do Conjunto Nacional, depois de uma tarde muito agradável com Marcela, exímia tradutor de Sade; ou o obscuro Submissão Concedida, que comprei numa banca de jornal no Leblon quando estava cortejando uma domme sadomasoquista que conheci num aplicativo e nunca saiu comigo; ou Os Bórgias, último livro de Mario Puzo, com o qual um estranho me presenteou aleatoriamente ao entreouvir minha conversa entusiasmada com Rachel em uma noite no Alfa Bar, depois de uma sessão de cinema no Estação Botafogo.
Lembro da banca de livros no Largo da Carioca, que vendia a três reais exemplares de edições antigas, como os clássicos A estratégia social da Perestroika, que tenta defender o indefensável, e O retrato do colonizado precedido pelo retrato do colonizador, que eu achei que seria relevante para minha formação nas Ciências Sociais mas não foi, ainda mais depois que desisti da carreira jurídica em prol do Cinema. Os clássicos da comédia carioca que comprei nas promoções dos sebos da Galeria dos Antiquários, em Copacabana: Stanislaw Ponte Preta, Carlos Eduardo Novaes, Leon Eliachar e principalmente Millôr Fernandes, com quem tive o privilégio de trabalhar anos depois, e que permanece como uma das minhas principais referências intelectuais.
Os que comprei a título de bibliografia no mestrado, no doutorado ou nas tentativas de acessar esses círculos; os muitos livros sobre roteiro audiovisual, vários que não são sequer bons, mas que comprei num acordo que fiz comigo mesmo de, na ausência de cursos de roteiro no Brasil (comecei quando era quase tudo mato!), de comprar um livro por mês sobre o assunto e estudá-lo; e por conta de sua importância na formação do meu pensamento em roteiro, profissão que escolhi, acabaram ficando. Assim como os quadrinhos que ganhei de meu grandessíssimo amigo Marton em mais de um aniversário; o Amós Oz que ganhei de Adriana com palavras dedicatórias lindíssimas, e a bela edição dos contos dos irmãos Grimm, cujos túmulos no cemitério de Schöneberg fiz questão de visitar no meu primeiro mês em Berlim, de que comprei três cópias numa promoção de um site e dei para duas pessoas que amei em momentos diferentes da minha vida.