Adeus, meus livros

Rafael Leal is a screenwriter, VR creator, and storyteller. He develops innovative storytelling solutions at the intersection between Art & Tech, using both traditional storytelling and cutting-edge technology such as Brain-Computer Interaction and Deep Learning.

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Education & Research
Written by
Rafael Leal
in
Portuguese
Published on
Oct 25, 2022

Imagem criada por Rafael Leal usando sistema de inteligência artificial a partir de informação textual.

Como escritor, sempre fui apegado à minha biblioteca pessoal, de sua formação com os primeiros livros infantis num cantinho crescente do meu armário até seu auge numérico, evento já pretérito, quando alcançou algumas centenas de exemplares e abarrotou duas estantes inteiras no hall do último apartamento em que morei sozinho no Rio. Seu crescimento paulatino e garimpeiro foi interrompido mais de uma vez, as mais recentes quando me mudei para a Alemanha pela primeira vez, ano passado, para um intercâmbio de sete meses em meu doutorado, e agora, quando uma nova mudança para Berlim - quiçá definitiva -  me obriga a reduzir ainda mais o tamanho de minha coleção.

Para um escritor, não é nada fácil desapegar de um livro que seja, imagina de uma parcela considerável de uma coleção. Livros são como tijolos que constroem uma formação intelectual, ou melhor, como camadas de uma rocha, desgastada pelas intempéries mas formadas pela sobreposição contínua de calor, pressão e sedimento. Prefiro a rocha ao tijolo porque vejo minha formação não como um edifício arquitetado desde a base, mas como uma pedra, forjada no magma e no vento, camada por camada, misturada, temperada. Livro por livro.

Como um geólogo, sei onde comprei cada um deles: a pesada edição das obras completas de Shakespeare, em papel bíblia, pela qual paguei 50 reais (na época uma fortuna) na Livraria Cultura do Conjunto Nacional, depois de uma tarde muito agradável com Marcela, exímia tradutor de Sade; ou o obscuro Submissão Concedida, que comprei numa banca de jornal no Leblon quando estava cortejando uma domme sadomasoquista que conheci num aplicativo e nunca saiu comigo; ou Os Bórgias, último livro de Mario Puzo, com o qual um estranho me presenteou aleatoriamente ao entreouvir minha conversa entusiasmada com Rachel em uma noite no Alfa Bar, depois de uma sessão de cinema no Estação Botafogo.

Lembro da banca de livros no Largo da Carioca, que vendia a três reais exemplares de edições antigas, como os clássicos A estratégia social da Perestroika, que tenta defender o indefensável, e O retrato do colonizado precedido pelo retrato do colonizador, que eu achei que seria relevante para minha formação nas Ciências Sociais mas não foi, ainda mais depois que desisti da carreira jurídica em prol do Cinema. Os clássicos da comédia carioca que comprei nas promoções dos sebos da Galeria dos Antiquários, em Copacabana: Stanislaw Ponte Preta, Carlos Eduardo Novaes, Leon Eliachar e principalmente Millôr Fernandes, com quem tive o privilégio de trabalhar anos depois, e que permanece como uma das minhas principais referências intelectuais.

Os que comprei a título de bibliografia no mestrado, no doutorado ou nas tentativas de acessar esses círculos; os muitos livros sobre roteiro audiovisual, vários que não são sequer bons, mas que comprei num acordo que fiz comigo mesmo de, na ausência de cursos de roteiro no Brasil (comecei quando era quase tudo mato!), de comprar um livro por mês sobre o assunto e estudá-lo; e por conta de sua importância na formação do meu pensamento em roteiro, profissão que escolhi, acabaram ficando. Assim como os quadrinhos que ganhei de meu grandessíssimo amigo Marton em mais de um aniversário; o Amós Oz que ganhei de Adriana com palavras dedicatórias lindíssimas, e a bela edição dos contos dos irmãos Grimm, cujos túmulos no cemitério de Schöneberg fiz questão de visitar no meu primeiro mês em Berlim, de que comprei três cópias numa promoção de um site e dei para duas pessoas que amei em momentos diferentes da minha vida.

Imagem criada por Rafael Leal usando sistema de inteligência artificial a partir de informação textual.

Também o livro que ganhei de meu amigo escritor Gigio, com quem compartilhei minhas primeiras incursões na poesia, no dia que parti da em que morávamos de volta para o Rio: é A campainha e o camundongo, de Jurandir Ferreira, com as páginas da edição belorizontina de 1955 nunca cortadas — informação que confessa que nunca o li, mas ainda o tenho.

Os que descobri na biblioteca de meus pais, que vão de Flaubert e Samuel Goldwin a Lee Iacocca e Akio Morita, além de dicionários que a internet tornou obsoletos e best-sellers de temporadas passadas, de Paulo Coelho a Sidney Sheldon. Lembro da autobiografia deste último, que comprei de passagem apressada por um vendedor que expunha seus achados num canto de chão da rua Humaitá, e dos que comprei ponderadamente na Estante Virtual, página que reúne o acervo de centenas de sebos Brasil afora, como os que iluminaram meu prolongado interesse no Rio Antigo, na religião judaica ou na umbanda, três pilares das minhas raízes.

Mas agora, que retorno para Berlim sem qualquer plano imediato de voltar, enseja-se uma nova redução drástica do volume da minha biblioteca. Parte já tinha ido quando meu pai morreu e trocamos, os que ficaram, um amplo apartamento por um quarto-e-sala que cabia no orçamento mas onde não cabia a soma das nossas posses. (Anestesiado por uma dor maior, esse corte pareceu mais fácil.) Agora, nesse novo corte, apenas o essencial sobreviveu, num total inferior a cento e cinquenta livros. 

Ficaram os de poesia, porque poesia nunca é demais; ficaram os escritos por amigos, e não é irrazoável pressupor que um escritor tenha muitos amigos escritores, sejam poetas, dramaturgos, contistas, romancistas… ou até mesmo roteiristas. Ficaram também os que traduzi ou revisei, porque não são muitos e fazem parte da minha trajetória como escritor; ou os livros infantis, sendo que já haviam ficado somente os que continham dedicatórias, principalmente de minhas avós, duas mulheres que conservaram a vida inteira o hábito da leitura e muito incentivaram a mim e aos meus irmãos a trilharem o mesmo caminho. Ruth Rocha, Ana Maria Machado, Ziraldo, Hans Christian Andersen — comprados nas muitas visitas à Livraria Malasartes, que ainda existe no Shopping da Gávea, onde além dos livros infantis, eu aprendi a amar o teatro. Ficou até mesmo o velho exemplar em italiano de A Ponte dos Suspiros, que meu bisavô Cesar, um dramaturgo italiano radicado no Brasil, adaptou para o rádio e passou a vida jurando que Dias Gomes, que não falava italiano, utilizara indevidamente sua adaptação na versão televisiva da obra. 

Mas não ficaram os livros que minha avó paterna, noutra fase da vida, já acometida pela doença que lhe levou a memória e a personalidade, comprava para mim nas promoções de círculos de leitura ou do jornal que ela assinou a vida inteira. Lolita e Cem anos de solidão, por exemplo, foram trocados por suas versões digitais de fácil acesso, caso um dia eu retorne a eles, assim como as histórias de detetive de Edgar Allan Poe, Dashiel Hammet e Raymond Chandler, que devorei em tardes intermináveis esperando ser buscado na escola.

Não ficaram os muitos livros presenteados por ex-alunos, porque depois de certo tempo no ofício do magistério seu número chega às centenas, e nem todos são bons escritores; ou por ex-amigos. porque chega uma fase da vida em que não dá mais para fingir que não se vê o racismo ou o machismo dos que nos cercam, mesmo que próximos. Não ficaram os Vargas Llosa, que muito me envolveram noutro tempo mas que foram contaminados irremediavelmente pela equivocada posição política de seu autor, nem os Júlio Verne, que embalaram meus sonhos adolescentes de ser escritor ou explorador.

Imagem criada por Rafael Leal usando sistema de inteligência artificial a partir de informação textual.

Também não ficaram os livros que perdi, como Memórias de minhas putas tristes, que ganhei de minha mãe num natal na casa de meus avós, quando todos eram vivos e a família era grande, ou O complexo de Portnoy, que não lembro nem quem me emprestou tampouco a quem emprestei, ambos atos desprovidos do esperado retorno. Essas obras li apenas uma vez e ainda assim marcaram a minha memória, assim como O senhor do lado esquerdo e O Ladrão de Cadáveres, que em algum momento da minha carreira fui contratado para adaptar para as telas por produtores de caráter e moral duvidosos.

Os livros sobre cinema, muitos, doei para a biblioteca montada pelo incansável Cavi. Parece mais fácil desapegar de livros quando seu destino é sabido. Roteiros publicados, entre brasileiros e gringos, um romance de Bergman, outro de Liv Ullman, diversos livros da série Aplauso, inclusive um espetacular sobre Paulo José, os livros do Avelar ou do Domingos, espero que inspirem outros cineastas como me inspiraram quando os adquiri e consumi avidamente. 

Desses ficou, no entanto, um exemplar que lhes faça (e me faça) memória: uma coletânea de resumos das principais teorias do cinema, ou do cinema ocidental, compilada por Dudley Andrew, menos por seu grande valor teórico do que pela concisa dedicatória do meu pai, emocionado com o fato de eu ter passado no vestibular para a faculdade de cinema em uma universidade pública nos idos do início do século. Esse fica, juntamente com os poucos escolhidos, empilhados num quarto ocioso na casa de meu tio Paulo. E a eles, meus livros, digo no máximo um até logo:

- Trago vocês comigo assim que for possível.

Rio de Janeiro, 07 de setembro de 2022

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