Brazilian Mythscapes

Um percurso dos mitos fundantes às pontes possíveis.

Writing
Education & Research
Audiovisual
Written by
Marina Carvalho
in
Portuguese
Published on
Oct 18, 2022

Cena do filme Apiyemiyekî?, de Ana Vaz.

A ocasião do bicentenário da independência do Brasil apresenta uma miríade de elementos para pensarmos as narrativas que têm forjado a ideia de uma nação brasileira ao longo da história. Proclamado em 1822 por Pedro de Alcântara, quarto filho do rei de Portugal à época, o ato costuma ser retratado em quadros e livros de história de maneira bastante romantizada. A icônica tela a óleo pintada por Pedro Américo, em que Dom Pedro I aparece montado a cavalo, com espada em punho e cercado por integrantes da guarda real às margens do rio Ipiranga, enaltece símbolos da monarquia e consolida a imagem do príncipe como um herói no imaginário do país. Não por acaso, acompanhamos em agosto deste ano uma peculiar forma de celebração deste evento histórico: o transporte do coração de Dom Pedro I de Portugal ao Brasil. Após meses de negociação, o órgão foi transportado em um avião da FAB, acompanhado por três autoridades portuguesas e uma brasileira. Ministros, parlamentares, militares e um descendente da família real recepcionaram o coração em sua chegada ao Brasil, quando foi levado diretamente para o Ministério das Relações Exteriores. Carregada de símbolos como o apenas descrito, a mitologia por trás da proclamação da independência foi fundamental para legitimar a identidade nacional brasileira. A ideia de uma independência pacífica, por exemplo, foi usada como contraponto às repúblicas vizinhas que tiveram processos conflituosos e se fragmentaram após a separação de suas metrópoles. Segundo o historiador Alberto Schneider, por trás dessa aparente tranquilidade havia um raciocínio de mostrar que a unidade nacional brasileira foi construída pacificamente por conta da monarquia. Há registros, no entanto, de diversas revoltas populares, principalmente nas regiões norte e nordeste do país, que teriam sido centrais em tal processo histórico. Destas, pouco se ouve falar.

É como uma proposta de reflexão sobre a construção da identidade brasileira que nasce a série de filmes Brazilian Mythscapes, com curadoria assinada por mim em uma colaboração com a Embaixada do Brasil em Berlim e o Arsenal – Institut für Film und Videokunst, pioneiro em tornar acessíveis desde 2011 suas coleções a artistas, cineastas, curadores e acadêmicos de diversos países. Criada durante o desenvolvimento de minha pesquisa sobre curadoria de filmes como ferramenta para diálogos culturais, viabilizada pelo programa The German Chancellor Fellowship, da Fundação Alexander von Humboldt, a mostra foi inspirada na noção de mythscape (livremente traduzido aqui como paisagem mítica) cunhada por Duncan S. A. Bell como um “reino discursivo no qual os mitos da nação são forjados, transmitidos, negociados e reconstruídos constantemente”. Bell questiona o uso indiscriminado na literatura acadêmica do termo "memória coletiva" como amparo à análise da formação da identidade de uma nação. Segundo ele, representações do passado dependem muito de fatores como etnia, classe e gênero. Tais narrativas deveriam, portanto, serem sempre contextualizadas a partir das relações de poder a que estas perspectivas estariam vinculadas. Neste sentido, a ideia de uma identidade nacional única, irredutível e essencialista ancorada em fatos históricos torna-se frágil. Como alternativa, o autor propõe o uso do termo “mito governante” para se referir às ficções de que o Estado faz uso em seu empenho em justificar a existência de uma nação coesa.

Cena do filme Ôrí, de Raquel Gerber.

"Só se pode sonhar com aquilo que se imagina, com o que é passível de ser traduzido em imagens, físicas ou não, mais ou menos conscientes. Alargar as fronteiras do possível requer também expandir os horizontes das imagens que criamos e consumimos. Eis o papel da arte e de eventos culturais como esta mostra de filmes: viabilizar essa operação em uma esfera coletiva, atribuindo a ela novas potências a partir do encontro."

Parto do questionamento de uma identidade nacional singular que traz Duncan S. A. Bell para buscar na seleção dos filmes que dão corpo à mostra vozes e olhares múltiplos que pudessem enriquecer ou mesmo desafiar a insuficiência de narrativas oficiais cristalizadas ao longo da história. O documentário escolhido para a abertura do programa, por exemplo, Ôrí, apresenta uma perspectiva ainda pouco acessada pelo grande público sobre a história do movimento negro no Brasil e sua relação com o carnaval, evento frequentemente exoticizado por olhares estrangeiros e que no filme ganha um cunho político, ritualístico e afetuoso. Os documentários Cabra Marcado Para Morrer e Babilônia 2000, ambos com direção de Eduardo Coutinho e gentilmente cedidos pela Embaixada do Brasil em Berlim, também contribuem para o programa com perspectivas de populações historicamente marginalizadas com pouco espaço na mídia tradicional. Tais perspectivas ganham ainda mais força em filmes produzidos por indivíduos que são parte dessas populações, em um movimento de apropriação de suas próprias histórias. É o caso de Yãmiyhex: As Mulheres-Espírito, dirigido pela dupla de cineastas indígenas Sueli e Isael Maxakali e os curta-metragens República, de Grace Passô e Perpétuo, de Lorran Dias, que também compõem a mostra. A justaposição dessas narrativas no programa em questão apontam para identidades brasileiras diversas que dialogam através de processos históricos compartilhados por esses grupos sociais, muitas vezes relacionados à violência com origem em nosso passado colonial.

Cena do filme Yãmiyhex: As Mulheres-Espírito, de Sueli e Isael Maxakali.

Outra referência teórica importante na concepção do evento, a autora estadunidense Ursula K. Le Guin afirma que mesmo quando vivenciamos um evento histórico, só podemos rememorá-lo - eu acrescentaria, até mesmo compreendê-lo - quando o narramos como uma história. Para os eventos que fogem à nossa experiência, tudo que temos são as histórias que nos contam. Assim, eventos passados só existiriam na memória, que é uma forma de imaginação. Neste elo entre memória e imaginação, habita também o diálogo entre ficção e realidade, ou, mais precisamente, entre narrativas históricas e ficcionais. Me interessa profundamente o uso de personagens fictícios e suas jornadas como instrumento de compreensão do real que nos cerca. O longa-metragem Inferninho, de Guto Parente e Pedro Diógenes, ilustra esse movimento com maestria ao unir elementos de fábula e tom surrealista em uma narrativa que discute conceitos fundamentais à vida cotidiana como classe, gênero, sexualidade e comunidade.

Se a forma com que narramos o mundo é intimamente atravessada pelas imagens a que somos expostos ao longo de nossa existência, também o são as possibilidades que almejamos para ele. Só se pode sonhar com aquilo que se imagina, com o que é passível de ser traduzido em imagens, físicas ou não, mais ou menos conscientes. Alargar as fronteiras do possível requer também expandir os horizontes das imagens que criamos e consumimos. Eis o papel da arte e de eventos culturais como esta mostra de filmes: viabilizar essa operação em uma esfera coletiva, atribuindo a ela novas potências a partir do encontro. Ouvir os relatos do público que assistiu aos filmes programados fez valer cada segundo de dedicação para que este evento acontecesse. Não apenas pessoas de outras nacionalidades se disseram gratas pela oportunidade de se aproximar através dos filmes de mundos até então desconhecidos, mas também brasileiros manifestaram alegria em acessar perspectivas e realidades diversas daquelas vividas em seus contextos sociais. Diante do momento político que atravessamos no Brasil, essa me parece uma poderosa aposta: histórias enquanto pontes.

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