A ocasião do bicentenário da independência do Brasil apresenta uma miríade de elementos para pensarmos as narrativas que têm forjado a ideia de uma nação brasileira ao longo da história. Proclamado em 1822 por Pedro de Alcântara, quarto filho do rei de Portugal à época, o ato costuma ser retratado em quadros e livros de história de maneira bastante romantizada. A icônica tela a óleo pintada por Pedro Américo, em que Dom Pedro I aparece montado a cavalo, com espada em punho e cercado por integrantes da guarda real às margens do rio Ipiranga, enaltece símbolos da monarquia e consolida a imagem do príncipe como um herói no imaginário do país. Não por acaso, acompanhamos em agosto deste ano uma peculiar forma de celebração deste evento histórico: o transporte do coração de Dom Pedro I de Portugal ao Brasil. Após meses de negociação, o órgão foi transportado em um avião da FAB, acompanhado por três autoridades portuguesas e uma brasileira. Ministros, parlamentares, militares e um descendente da família real recepcionaram o coração em sua chegada ao Brasil, quando foi levado diretamente para o Ministério das Relações Exteriores. Carregada de símbolos como o apenas descrito, a mitologia por trás da proclamação da independência foi fundamental para legitimar a identidade nacional brasileira. A ideia de uma independência pacífica, por exemplo, foi usada como contraponto às repúblicas vizinhas que tiveram processos conflituosos e se fragmentaram após a separação de suas metrópoles. Segundo o historiador Alberto Schneider, por trás dessa aparente tranquilidade havia um raciocínio de mostrar que a unidade nacional brasileira foi construída pacificamente por conta da monarquia. Há registros, no entanto, de diversas revoltas populares, principalmente nas regiões norte e nordeste do país, que teriam sido centrais em tal processo histórico. Destas, pouco se ouve falar.
É como uma proposta de reflexão sobre a construção da identidade brasileira que nasce a série de filmes Brazilian Mythscapes, com curadoria assinada por mim em uma colaboração com a Embaixada do Brasil em Berlim e o Arsenal – Institut für Film und Videokunst, pioneiro em tornar acessíveis desde 2011 suas coleções a artistas, cineastas, curadores e acadêmicos de diversos países. Criada durante o desenvolvimento de minha pesquisa sobre curadoria de filmes como ferramenta para diálogos culturais, viabilizada pelo programa The German Chancellor Fellowship, da Fundação Alexander von Humboldt, a mostra foi inspirada na noção de mythscape (livremente traduzido aqui como paisagem mítica) cunhada por Duncan S. A. Bell como um “reino discursivo no qual os mitos da nação são forjados, transmitidos, negociados e reconstruídos constantemente”. Bell questiona o uso indiscriminado na literatura acadêmica do termo "memória coletiva" como amparo à análise da formação da identidade de uma nação. Segundo ele, representações do passado dependem muito de fatores como etnia, classe e gênero. Tais narrativas deveriam, portanto, serem sempre contextualizadas a partir das relações de poder a que estas perspectivas estariam vinculadas. Neste sentido, a ideia de uma identidade nacional única, irredutível e essencialista ancorada em fatos históricos torna-se frágil. Como alternativa, o autor propõe o uso do termo “mito governante” para se referir às ficções de que o Estado faz uso em seu empenho em justificar a existência de uma nação coesa.